Os direitos humanos dos povos indígenas
02/02/07
Basta ver que uma ação em favor de uma etnia indígena já demora 24 anos e espera decisão do STF. Tal estado de coisas precisa ser enfrentadoUM FATO que ocorre periodicamente na região que abrange os Estados do Maranhão, do Pará, da Bahia e de Minas Gerais, onde vivem várias tribos indígenas, como Guajajara (MA), Krenak (MG) e Xicrim (PA), precisa ser enfrentado sem apelos a interesses políticos, tendo em vista apenas as violações a direitos dos povos indígenas que ali vivem, de trabalhadores de empresas da região e de simples cidadãos. Segundo informa a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), uma das empresas da região, em contrato de financiamento celebrado com o Banco Mundial, se comprometeu a dispor ajuda financeira para acudir aos interesses daquelas tribos no que respeita à saúde, cuidados médicos, alimentação, educação e moradia. Findo o contrato com o banco, a mineradora continuou a repassar recursos ao governo para que, mediante ações da Funai e outras entidades governamentais, fossem contemplados os direitos dos indígenas da região. Contudo, vez por vez, esses direitos não são atendidos, o que leva os indígenas a adotar represálias -fechamento da estrada de ferro Carajás e invasão das instalações de empresas da região, em especial da Vale- para que obtenham o que lhes é devido. Nessas oportunidades, alguma coisa se faz e os indígenas retornam aos seus lares. São fatos que ocorrem periodicamente, com prejuízos concretos para índios, usuários da ferrovia e trabalhadores. Essas ocorrências, que permitem visualizar um problema de maior amplitude, foram levadas ao conhecimento da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos, que, tendo em atenção vários estudos e relatórios de entidades não-governamentais, ingressou na Comissão Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (órgão da OEA) com o pedido de audiência temática, envolvendo todos os atores públicos e privados, para o esclarecimento da situação geral das etnias indígenas, permitindo, outrossim, a revelação de casos que possam tramitar naquela comissão e, subseqüentemente, ser apresentados à decisão da Corte Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos. É evidente que tal situação não pode perdurar, mormente quando a Funai não interage como órgão governamental e as ações do Conselho Indigenista Missionário se estiolam, inclusive, no Judiciário de primeira instância, em que, geralmente, não encontram repercussão e têm de voltar-se para os tribunais em que as causas se eternizam. Para ter uma idéia, basta lembrar que ação em favor da etnia pataxó hã-hã-hãe já demora 24 anos e aguarda decisão do STF. Esse estado de coisas precisa ser enfrentado, de sorte a obrigar o Estado a cumprir obrigações impostas pela Constituição Federal no que respeita aos direitos dos povos indígenas, que, para obter, no mínimo que seja, atenção, podem e cometem atos de violência contra terceiros. Há aqui, sem dúvida, uma dupla violação de direitos fundamentais por parte do Estado: diretamente, relativamente aos índios, e indiretamente, quando estes, desesperados, partem para a violência e violam direitos de terceiros. A comissão interamericana, em seu relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, ao tratar dos povos indígenas, após um exaustivo exame do problema, já advertia: “A situação referente aos cidadãos indígenas do Brasil em relação à saúde, alimentação e acesso a serviços públicos é preocupante. Os médicos denotam condições claramente discriminatórias em relação aos padrões e serviços da população em geral”. As recomendações da referida comissão para que se acelerasse e aprofundasse o cumprimento dos objetivos de curto e médio prazos estabelecidos no Plano Nacional de Direitos Humanos restaram descumpridas, em claro prejuízo na implementação desses objetivos que incorporam, pura e simplesmente, a obediência às normas constitucionais vigentes. A Anistia Internacional, em seu relatório de 2003, assinala que “povos indígenas, em vários pontos do país, também sofreram ameaças, ataques e, inclusive, homicídios, sobretudo em sua luta pela terra”. Diante da apatia do Estado brasileiro, numa situação de completo abandono dos povos indígenas, só uma solução parece válida: a entrega do problema ao sistema interamericano de direitos humanos, mediante audiência pública que deverá ter lugar em Washington na próxima reunião ordinária da comissão interamericana, o que irá permitir apresentação de casos emblemáticos para soluções pontuais, mediante recomendações da comissão ou decisões da corte.
HÉLIO BICUDO, 84, advogado e jornalista, é presidente da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos. Foi vice-prefeito do município de São Paulo (gestão Marta Suplicy).
Folha de São Paulo