O presidente da Vale no epicentro da crise
31/10/08
Malu Gaspar (Revista EXAME) — Na quarta-feira 15 de outubro, o presidente da Vale, Roger Agnelli, encontrou-se com o sul-africano Ivan Glasenberg, membro do conselho da mineradora anglo-suíça Xstrata. O local escolhido foi um restaurante em Londres, onde ambos almoçaram. `Você deveria me agradecer por não ter conseguido comprar a Xstrata`, disse Glasenberg. No fim do ano passado, a Vale tentou comprar a Xstrata, quinta maior mineradora do mundo, sem sucesso. De início, o malogro das negociações deixou uma sensação amarga entre os executivos brasileiros, que sonhavam em transformar a Vale na maior mineradora do mundo. Hoje, diante da crise de crédito mundial, o insucesso provou-se uma dádiva. A Vale teria uma dívida de dezenas de bilhões de dólares para pagar e, pior, assistiria à redução drástica do valor de mercado da companhia comprada. A Xstrata, que valia 90 bilhões de dólares na época das negociações, vale hoje 13 bilhões de dólares. `Pois eu te agradeço, e a prova disso é que vou pagar o almoço`, disse Agnelli. A troca de amabilidades, no entanto, escondeu o fato de que a Vale de Agnelli é, assim como a Xstrata, outra vítima da crise. O valor de mercado da mineradora brasileira, que chegou a 321 bilhões de reais em maio, caiu para 124 bilhões em 27 de outubro, data do fechamento desta edição. Somente nos últimos 30 dias, a desvalorização das ações ultrapassou os 30%. A mineradora vale hoje o mesmo que valia em 2005. E Roger Agnelli, queira ou não, está no epicentro da crise. Para um executivo acostumado a controlar todos os aspectos do negócio, como Agnelli, a crise financeira global lança a Vale num desconfortável período de incerteza. No dia 23 de outubro, a mineradora anunciou seus resultados para o terceiro trimestre do ano – e deu a seus acionistas motivo para comemoração. A Vale, maior empresa privada brasileira, dona de reservas únicas de minério de ferro e reconhecida por sua competitividade mundial, teve lucro de 4,8 bilhões de dólares no trimestre, um recorde para o período. Pois no dia seguinte à divulgação as ações da empresa caíram outros 5% na Bolsa de Valores de São Paulo – uma amostra de como as expectativas em relação ao futuro podem alterar o presente. O principal motivo do paradoxo entre resultado e preço da ação é a indefinição sobre os efeitos que a crise atual trará para o consumo de metais. Na semana em que a Vale divulgava seus resultados, equipes da área comercial consumiram dias tentando estimar a queda da demanda, sem chegar a nenhuma conclusão. Alguns funcionários previam queda de 30% nos embarques para o exterior nos próximos meses. No Canadá, onde esteve no início de outubro para vistoriar as operações da ex- Inco, Agnelli também ouviu relatos pouco animadores. A subsidiária canadense é uma das maiores produtoras de níquel do mundo, e só neste ano o valor da tonelada do minério – o segundo produto mais importante da Vale, após o minério de ferro – já caiu 67%. Como as encomendas ameaçam rarear, Agnelli teve de ordenar um corte de 5% na produção de níquel, com a diminuição do ritmo de fábricas na China e na Indonésia, onde o custo da energia é mais alto. `O cenário geral no mundo todo é de crise e ninguém vai passar ao largo disso. A gente tem de encarar`, diz Agnelli. `Sabíamos que esse momento chegaria e nos preparamos para ele nos últimos dois anos.` Não deixa de ser curioso que justamente agora, quando vive no turbilhão causado pela crise financeira global, Agnelli seja apontado numa pesquisa realizada por EXAME e Ibope como o executivo mais admirado do Brasil. Em setembro, o Ibope ouviu mais de 300 presidentes, vice-presidentes e diretores das maiores empresas do país. O objetivo da pesquisa era descobrir quais as companhias e os administradores mais admirados pelos homens e mulheres de negócios brasileiros. Pois Agnelli foi o vencedor, com 14% dos votos. O segundo da lista de executivos foi Fábio Barbosa, presidente do grupo Santander Brasil (ex-ABN Amro Real), lembrado por 9% dos participantes. De qualquer ângulo que se olhe, foi uma vitória consagradora para Agnelli. Segundo os entrevistados, a Vale é também a companhia mais admirada do país, a que tem a melhor visão estratégica e, por último, mas não menos importante, os melhores gestores. Além da Vale, destaque para a suíça Nestlé, vencedora na categoria qualidade de produtos, e para a AmBev, eleita a melhor formadora de talentos. A AmBev acaba de promover João Castro Neves, executivo que entrou na empresa com 28 anos, à presidência da operação brasileira. Ele descansa no sétimo dia Em entrevista a EXAME (leia abaixo), Agnelli não demonstrou surpresa com a escolha de seu nome entre os maiores executivos brasileiros. Ele se habituou, afinal, a colher os resultados de um trabalho incrivelmente bem-sucedido à frente da Vale. Em sua gestão, Agnelli fez a Vale mudar de patamar no cenário mundial da mineração. Desde 2001, quando ele assumiu a companhia, as receitas da empresa se multiplicaram por 9 e o lucro cresceu 823%, de 1,3 bilhão para 12 bilhões de dólares. Em sua administração, o faturamento da Vale tornou-se maior que o PIB de 96 países, e a mineradora, que tinha presença em 18 nações, hoje atua em mais de 30. Nesse período a Vale se tornou a maior representante de um novo capitalismo brasileiro – um modelo que ignora fronteiras e dificilmente será totalmente revertido. Graças a uma combinação de reservas abundantes, gestão competente e agressividade comercial, a Vale foi, é e provavelmente continuará a ser uma potência mundial em seu setor. Essa transformação fez com que a rotina de Agnelli passasse a se assemelhar – e muito – à de um chefe de Estado. Periodicamente, o executivo é obrigado a visitar operações no Pará, no Canadá, na distante Nova Caledônia e na China. Somente neste ano, ele já passou 367 horas, cerca de meio mês, dentro de aviões, em vôos a trabalho. Entre uma viagem e outra, ainda tem de encontrar o presidente Lula, reunir-se com investidores e jantar com ambientalistas. A euforia está acabando Agnelli foi indicado à presidência da Vale pela Bradespar, segunda maior acionista da mineradora. Se, quando chegou ao posto, ele enfrentava resistências, principalmente na Previ, fundo de pensão do Banco do Brasil que é o principal acionista da mineradora, hoje Agnelli é unanimidade. E os números mostram por quê. Em sua gestão, os dividendos pagos aos acionistas deram um salto de 150%, de 1 bilhão de dólares em 2001 para 2,5 bilhões neste ano. `Ele tem conseguido bons resultados. Conhece bem o mercado, respeita os limites dos acionistas e está sempre disponível para um diálogo com os altos escalões`, afirma Sérgio Rosa, presidente da Previ e do conselho de administração da Vale. O salário de Agnelli também cresceu na mesma medida de seu prestígio. Em 2001, ano em que assinou seu primeiro contrato, sua remuneração total, incluindo bônus e benefícios, foi de 1,8 milhão de dólares anuais, valor considerado baixo para executivos de ação global. Duas renegociações depois, estima-se que Agnelli leve para casa cerca de 7 milhões de dólares por ano. Trabalhar para isso, ele trabalha. Workaholic assumido, Agnelli não tem problemas em contaminar de trabalho os poucos momentos de folga. As últimas férias, de uma semana, ele passou velejando pela costa da Itália com a mulher e Emilio Riva, dono da maior siderúrgica italiana – e, portanto, um cliente. Segundo analistas, amigos, observadores e até mesmo seus inimigos, o sucesso de Agnelli à frente da Vale se deve às duas principais características de seu estilo de gestão. A primeira é a agressividade. Sem ela, Agnelli não teria conseguido seu maior feito: aumentar, ano após ano, o preço do minério de ferro vendido pela Vale às siderúrgicas chinesas. No início de 2003, a equipe da área comercial já estava em negociação com os clientes havia dois ou três meses. Trabalhava com a meta de 7% de reajuste, mas já dava como certo que o aumento chegaria a 8%. Agnelli reuniu a equipe e disse que a meta havia mudado: `Agora quero 14%`, disse, para a perplexidade de alguns. `As negociações atrasaram quatro meses e o desgaste com os clientes foi enorme. No final, conseguimos apenas 1% mais`, diz um dos participantes daquela negociação. Nos anos seguintes, os aumentos foram multiplicados graças ao estilo Agnelli de fazer negócios. Os problemas dessa agressividade surgem no ambiente interno da Vale. São famosas nos corredores histórias de funcionários humilhados por Agnelli, da secretária que teria sido chamada de burra ao diretor chamado de ameba. A Vale, por meio de sua assessoria de comunicação, nega todas essas histórias. Durante a entrevista a EXAME, em vez de responder diretamente se é um chefe temido, Agnelli chamou Carla Grasso, diretora de recursos humanos e serviços corporativos, que trabalha com Agnelli desde que ele assumiu a Vale. `Carla, você me considera um chefe grosso?`, perguntou. A resposta, claro, foi negativa. `Se ele fosse essa peste que falam, eu já não estaria aqui`, diz ela. `Ele é um gestor duro, uma pessoa exigente que cobra resultados.` Nos últimos dois anos, segundo estimativa feita por executivos e ex-executivos da Vale ao Wall Street Journal, duas dúzias de funcionários de alto nível deixaram a companhia ou foram demitidos por não se adequarem ao `estilo Agnelli`. Nas pesquisas internas sobre o clima, são comuns as reclamações de funcionários que se dizem sob forte estresse. A segunda característica mais forte de Agnelli é sua obsessão por detalhes, capaz de atormentar funcionários dos mais diversos níveis hierárquicos. Durante uma visita à mina de Carajás, no Pará, Agnelli sentiu um cheiro de queimado na van que o buscou no aeroporto. `Vai fundir esse motor. Como é que você deixa o motor chegar a esse ponto?`, disse ao motorista da van. `Eu já falei ?n? vezes para o pessoal de manutenção, e eles não fazem nada`, respondeu o motorista. Agnelli mandou chamar o responsável e exigiu providências. Depois de quatro ligações para o funcionário sem uma resposta satisfatória, Agnelli perdeu a paciência e mandou demiti-lo. Não é um assunto muito corriqueiro para tomar tanto tempo do presidente da maior empresa privada do Brasil? `É assim que eu acho que deve ser. Tem de ser como olho de dono. Eu, pelo menos, não tenho a surpresa de perder dinheiro com derivativos`, afirma. A única coisa que ele não faz é demitir pessoalmente. Quando Agnelli não está satisfeito com o desempenho de algum funcionário, seja ele um diretor executivo ou um simples gerente, é Carla Grasso quem se encarrega de contar a má notícia à vítima. `Eu não demito. Quem faz isso é a Carla`, diz. A partir de agora, porém, Agnelli terá menos tempo para se preocupar com questões do tipo óleo queimado num motor de uma van. O superciclo das commodities, que elevou os preços dos minérios a patamares inéditos, deverá esfriar. O principal motivo para isso é a esperada desaceleração da economia chinesa. A China compra, sozinha, 30% do minério de ferro da Vale e responde por 20% das receitas. Aos acionistas da companhia, Agnelli estimou que o crescimento da China deve passar dos 11,4% do ano passado para 8% em 2009 e já admitiu publicamente a hipótese de diminuir o ritmo da produção de minério para manter os preços. Embora as previsões sobre a redução do preço ainda variem bastante, de `otimistas` 10% a cataclísmicos 40% de queda, o certo é que o consumo de minério vai cair. Para tornar as coisas ainda mais complicadas, as siderúrgicas estão reforçando sua estratégia de obter fontes diretas de minério. Pressionados por anos de altos reajustes nos preços do minério de ferro, japoneses, indianos e chineses lançaram-se numa corrida para adquirir seu próprio minério e diminuir a dependência do produto da Vale. A recente compra de 40% da Namisa, mineradora da CSN, foi a última dessas iniciativas. `Os japoneses também trocam os pés pelas mãos de vez em quando`, diz Agnelli. O superexecutivo que já se mostrou talhado para levar a Vale ao topo da economia global terá de provar, agora, que tem as habilidades necessárias para conduzir a gigante durante a tormenta. Não é a primeira vez que Agnelli passa por um teste de força. O maior deles aconteceu quando deixou a Bradespar, braço de participações em empresas do Bradesco, para assumir o conselho de administração da Vale. Até então, Agnelli era visto como um executivo promissor, mas sem experiência fora das asas de seus mentores no maior banco privado brasileiro. Em favor de Agnelli, cabe observar que a crise pega a Vale num momento de força. A captação, em junho, de 12 bilhões de dólares nas bolsas de São Paulo e de Nova York foi providencial: hoje, a Vale tem em caixa 15,9 bilhões de dólares e um endividamento considerado baixo, equivalente à geração de caixa de um ano, para ser pago nos próximos nove anos. Embora tenha mantido os investimentos em 14,2 bilhões de dólares em 2009, a promessa de divulgar projeções para os próximos cinco anos foi abandonada. Para Agnelli, seu maior desafio no momento não é reduzir custos ou arcar com receitas menores. Só a desvalorização do real e outras moedas, como o dólar australiano, que soma 60% dos custos da companhia, já vai ajudar no corte de despesas. E, embora seja certo que a Vale vá perder receita nos primeiros meses do ano, Agnelli espera uma recuperação no último trimestre de 2009. O desafio, segundo ele, é segurar a vontade de voltar às aquisições, já que o preço das possíveis presas da Vale está baixo. `O grande problema agora vai ser separar as boas oportunidades das más.` As empresas mais admiradas É justamente na agressividade que marcou a ascensão de Agnelli à frente da Vale, porém, que os analistas identificam os maiores riscos para a mineradora. Se, negociando com base em uma posição de força, o executivo conseguiu obter dos chineses os aumentos que quis no preço do minério de ferro, agora Agnelli terá de negociar numa posição de fraqueza. E, caso erre o tom, pode criar problemas com os chineses. Há seis meses a Vale já negocia um aumento de 12% sobre o preço que já havia sido acertado no início do ano, o que deu origem a boatos de que as siderúrgicas chinesas boicotariam a Vale. Com a crise, os clientes asiáticos passaram a usar o estoque acumulado de mais de 70 milhões de toneladas de minério de ferro para desafiar a Vale e endurecer as negociações. `Nós aprendemos com os chineses a esperar. Em três ou quatro meses eles devem consumir todo o estoque. Não temos pressa`, diz Agnelli. `Sem reajuste, não tem minério.` A fórmula deu certo até agora. E o executivo mais admirado do Brasil, pelo que se vê, não tem pressa para mudá-la.
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