Empresas disputam arqueólogos para atuar em grandes obras
21/09/09
Cláudio Belli / Valor O arqueólogo Renato Kipnis diz que a rigidez no controle das construções por órgãos do governo está puxando as contratações
Indiana Jones não é mais o mesmo. Agora, bate ponto, cumpre expediente de até 14 horas e trabalha para grandes empresas. Pelo menos no Brasil, a profissão de arqueólogo recebeu um reforço a partir de 2002 com a obrigatoriedade da presença do profissional em obras que possam causar impactos ambientais. Segundo especialistas do setor, a disseminação de empreendimentos de grande porte- como hidrelétricas, estradas e gasodutos-, os investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o aumento da fiscalização nas construções provocaram um salto de até 100% nas contratações de arqueólogos, nos últimos três anos. A formação acadêmica dos profissionais também ganha corpo com a criação de novos cursos de graduação e especialização.
“A expansão do mercado de trabalho foi ocasionada pela necessidade crescente de pessoal para atender às demandas da arqueologia de contrato, relacionada a grandes empreendimentos”, analisa Denise Pahl Schaan, presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira e coordenadora do curso de especialização em arqueologia da Universidade Federal do Pará. “Hoje, os serviços para empresas são responsáveis por mais de 90% dos projetos na área e já se sobressaem em relação às pesquisas acadêmicas, que sempre caracterizaram a arqueologia no Brasil.”
Segundo Renato Kipnis, diretor da Scientia Consultoria, especializada na prestação de serviços de arqueologia e paleontologia, a demanda no setor dobrou nos últimos anos. “O crescimento do número de obras de grandes orçamentos, as iniciativas do PAC e a rigidez no controle das construções por órgãos do governo puxaram a busca por profissionais.” Estados como o Piauí, Pará e Rondônia apresentam uma grande demanda de especialistas.
A Scientia foi criada há 20 anos e coleciona clientes como Santo Antônio Energia e Companhia de Gás de São Paulo (Comgás). Com sede em São Paulo e unidades em Belém, Belo Horizonte e Florianópolis, chega a contratar até 11 arqueólogos por obra, com projetos no Pará, Espírito Santo, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso. A especialidade da empresa é recrutar profissionais para prospecção e resgate arqueológico.
De acordo com o diretor, o grande boom do mercado aconteceu entre 2007 e 2008. Com a crise, 30% dos contratos agendados para 2009 acabaram não saindo do papel, mas a empresa tem trabalho garantido até 2010- de 82 projetos, 19 deles terão continuidade no próximo ano. Para selecionar profissionais, conta com a ajuda das universidades. Cerca de 70% da força de trabalho da Scientia são de recém-formados, com até dois anos de profissão. “Mas todos os coordenadores de projetos têm mestrado ou doutorado na área.”
É o caso do arqueólogo paulista Francisco Pugliese, com formação em história e mestrado em arqueologia. Há três meses, foi chamado para coordenar um estudo na Bacia do Rio Madeira, em Rondônia. A sua missão é fazer o levantamento do patrimônio arqueológico na região da Usina Hidrelétrica Santo Antônio. “A equipe já encontrou vestígios de sete mil anos de ocupação indígena”, diz o especialista, que trabalha 14 horas por dia- dez em campo e quatro horas em pesquisas de laboratório.
“Para exercer a profissão, é necessário ter disponibilidade para viajar e fácil adaptação em regiões inóspitas”, diz Pugliese, que foi recrutado dentro da universidade e acumula experiências em campo desde 1999. “O mercado precisa de arqueólogos com boa formação acadêmica, mas dispostos a realizar estudos de qualidade para as empresas.” Segundo ele, o maior desafio da função é produzir um grande volume de informações dentro dos prazos estipulados pelas empreiteiras.
O projeto da Usina Hidrelétrica Santo Antônio, no Rio Madeira, em Porto Velho (RO), por exemplo, é resultado de seis anos de estudos que avaliaram os aspectos ambientais da obra. Com investimentos de R$ 13,5 bilhões, a usina deve entrar em operação em 2012. “Temos 5,5 mil empregados, sendo 80 arqueólogos”, afirma Carlos Hugo de Araújo, diretor de sustentabilidade da Santo Antônio Energia, empresa responsável pela construção e operação da usina.
“Quando iniciamos o empreendimento, os arqueólogos foram os primeiros a visitar o terreno para a prospecção do material arqueológico.” Para admitir profissionais, a companhia recorreu a empresas do setor e ao Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), em Belém (PA), que desenvolve pesquisas sobre a diversidade amazônica.
A preocupação não era gratuita. Em uma área de mil hectares da usina, pelo menos 50% do terreno apresentavam vestígios arqueológicos. “Já encontramos dez ocorrências importantes, como urnas indígenas para a preservação de alimentos.” Segundo Araújo, há estudos para criar um acervo dos objetos identificados na Universidade Federal de Rondônia.
A 100 quilômetros da obra da usina, também no Rio Madeira, o consórcio Energia Sustentável do Brasil mantém uma equipe de arqueologia com 60 pessoas nos canteiros da hidrelétrica de Jirau, resultado de um investimento de R$ 10 bilhões. O Energia Sustentável, formado pela GDF Suez, Eletrosul, Chesf e Camargo Corrêa, é responsável pela construção da usina.
“Não foi fácil encontrar arqueólogos disponíveis no início da obra”, lembra Antonio Luiz Abreu, diretor de meio-ambiente e sustentabilidade do consórcio. “Fizemos convênios com universidades, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e contratamos uma empresa especializada.” O resgate arqueológico na área de Jirau vai originar um museu, a 10 quilômetros da usina, com inauguração prevista para 2012.
“A procura por arqueólogos cresceu tanto na área de campo quanto nas universidades e nos museus, que também precisam de produção científica especial”, analisa a arqueóloga Erika Robrahn-González, 29 anos de profissão e diretora da Documento Patrimônio Cultural, empresa criada há 22 anos para desenvolver projetos dedicados ao patrimônio cultural. A companhia tem 15 arqueólogos fixos e contrata até 50 profissionais por projeto.
Atualmente, além da hidrelétrica de Jirau, pilota outros 45 projetos -50% deles têm longa duração e alguns serão mantidos até 2015. “Nos últimos três anos, os negócios aumentaram 30%”, afirma Erika, que emprega colaboradores em São Paulo, Minas Gerais e na região do Alto Xingu.
Mas, apesar da busca por mão de obra no setor, a profissão de arqueologia ainda não é reconhecida no país. A regulamentação é pleiteada pelo projeto de lei 912, de 2007, que tramita na Câmara Federal. Enquanto isso, especialistas observam um fortalecimento do ensino da arqueologia com o surgimento de novos cursos de graduação e especialização- nos últimos quatro anos, foram criados, pelo menos, oito cursos de graduação e três mestrados na área, no Brasil.
“Em algumas universidades, onde a formação acontecia nos programas de antropologia e história, houve uma expansão da graduação, com a criação de cursos próprios de arqueologia”, diz Denise Schaan, da Sociedade de Arqueologia Brasileira. “Tradicionalmente, a formação de arqueólogos no Brasil e em outros países só acontecia na pós-graduação.”
A maioria dos profissionais ativos é graduada em história, geografia, sociologia, geologia ou arquitetura, e tem especializações em arqueologia. “Os cursos precisam direcionar o ensino para a arqueologia de resgate, necessária para os grandes projetos de mineração e hidrelétricas”, avalia Renato Kipnis, da Scientia.
Existem pelo menos dez cursos de graduação em arqueologia no Brasil, em Estados como Piauí, Pernambuco, Sergipe, Minas Gerais e Goiás. A Universidade Federal de Rondônia abriu, neste semestre, um novo curso para atender à demanda de profissionais, por conta de obras na região Norte.
Para Maria Fátima Souza, subcoodenadora do curso de arqueologia e preservação patrimonial da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), no Piauí, primeiro curso público na área, a demanda de profissionais vai continuar crescendo. “Dos 17 alunos formados na primeira turma do curso, iniciada em 2004, todos estão empregados”, revela. “Por lei, as empresas precisam do acompanhamento do arqueólogo para examinar os terrenos antes e durante as obras.”
A legislação que obriga a presença dos especialistas em obras de pequeno e grande porte foi criada nos anos 1960 e ganhou rigidez a partir de 2002. Com isso, todos os sítios arqueológicos são protegidos por lei, mesmo os que ainda não foram descobertos- e para construir qualquer usina ou estrada é necessário fazer um levantamento arqueológico do local. “No Piauí, há grande procura por técnicos por conta da presença de mineradoras interessadas em reservas de ferro, fósforo, níquel, mármore e calcário”, diz Maria Fátima.
Segundo Denise, alunos de arqueologia sem formação completa ganham até R$ 1,5 mil por mês. “Órgãos públicos, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), admitem arqueólogos por salários de R$ 6 mil a R$ 8 mil, por contratos temporários”, diz. E quando o trabalho é em campo, a remuneração pode aumentar. “Se a legislação for cumprida à risca, precisaremos de todos os arqueólogos que se formam no Brasil.”
Valor Econômico