E por falar em privatização…
30/10/06
No momento em que a venda de estatais voltou a ser criticada, a Vale dá uma prova de força e torna-se a segunda maior mineradora do mundo
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POR DAVID FRIEDLANDER E ISABEL CLEMENTE
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A primeira providência de Roger Agnelli, presidente da Vale do Rio Doce, quando soube que sua proposta de compra da mineradora canadense Inco tinha sido aceita, foi ligar dos Estados Unidos para Mário Teixeira, um de seus melhores amigos e representante do Bradesco no conselho de administração da Vale. Depois da comunicação sobre o negócio, uma lembrança: “Lembra daquela vez que a gente foi para Nova York fazer o curso sobre mercado de capitais? Lembra da foto na frente do prédio da Merrill Lynch? De como a gente se perguntava se um dia seríamos como eles? A gente chegou lá”.
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Agnelli se referia a uma viagem de 1985. Ele e Teixeira, então seu chefe no Bradesco, faziam um curso de especialização. Ficaram encantados com os escritórios do banco Merrill Lynch, por isso posaram para fotos com a sede da instituição ao fundo, como se fosse um monumento. Eram outros tempos. O Brasil tinha uma economia fechada, a Vale era considerada a melhor das estatais brasileiras e Agnelli um garoto de 26 anos que começava a despontar no Bradesco. Nos últimos 21 anos, tudo mudou. A Vale foi privatizada em 1997, e Agnelli tornou-se seu presidente quatro anos depois. Na segunda-feira, a Vale comprou a Inco por US$ 13,4 bilhões. Tornou-se a segunda maior mineradora do mundo – atrás apenas da BHP Billington, da Austrália. Foi o maior negócio já realizado por uma empresa latino-americana.
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A ironia é que a Vale do Rio Doce e Roger Agnelli são produto das grandes privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso – processo que passou a ser criticado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua campanha pela reeleição. Lula afirmou que, se eleito, Geraldo Alckmin, candidato do PSDB, venderia a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Alckmin negou a intenção de avançar nas privatizações. Mas Lula foi bem-sucedido em passar a idéia de que a eleição do rival levaria ao desmonte do Estado – uma manobra para capitalizar a enorme receptividade da sociedade brasileira ao discurso estatizante. Nesse processo de demonização, Lula criticou também a venda da Vale do Rio Doce. “Eu não teria privatizado a Vale. Fique certo que não”, disse em entrevista ao jornal O Globo, em outubro. Mas a Vale teria ido tão longe se ainda fosse uma empresa estatal?
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Nenhuma das privatizações realizadas no Brasil ganhou ressonância política e ideológica igual à da venda da Vale. Ao contrário do que acontecia com a maior parte das empresas estatais, a Vale era uma companhia eficiente, lucrativa e gigantesca. Se era tão boa, por que vendê-la? Por duas razões, segundo o governo na época. Uma delas era a necessidade de o governo fazer caixa para quitar suas dívidas. A outra explicação era que a Vale seria privatizada justamente para não perder qualidade. Como a mineração é uma atividade que exige investimento pesado e constante, a Vale não tinha dinheiro suficiente para investir na mesma intensidade que os concorrentes e acabaria ficando para trás.
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“Se ainda fosse estatal, a Vale jamais chegaria aonde chegou”, afirma Jorio Dauster, ex-embaixador e presidente da mineradora entre 1999 e 2001. Dauster enumera dois motivos para justificar sua opinião. O primeiro é financeiro: além de não ter capacidade de investimento, a Vale também não teria acesso a uma linha de crédito como a que permitiu a compra da Inco na semana passada. “Sua eficiência era notável para uma estatal, mas não atendia a padrões privados”, diz Dauster.
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O segundo motivo é de caráter administrativo. De acordo com Dauster, nas empresas estatais as decisões às vezes passam por conselhos nacionais e ministérios, o que atrasa os negócios. O dia-a-dia de uma empresa pública é lento, porque pequenas e grandes aquisições dependem da Lei de Licitações, cujo objetivo é dar transparência às compras governamentais. Não haveria problemas se a Vale competisse com outras empresas estatais. Mas o mundo real é mais complicado. “Meus antecessores e ex-diretores contavam que passavam metade do tempo em Brasília tentando acelerar processos e encontrando todo tipo de dificuldade”, afirma Dauster. Finalmente, Dauster lembra as imposições políticas. “Quando se é parte da máquina, é normal que isso aconteça. Em situações cruciais, o governo resolvia colocar a mineradora de sócia na ferrovia que estava fracassando, e por aí vai”, diz.
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Quase dez anos depois, a privatização da Vale continua polêmica. O economista Reinaldo Gonçalves, s professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), está entre os que defendem a reestatização. “Eu nunca teria privatizado a Vale por seu caráter estratégico”, afirma. “A compra da Inco pode ser boa na lógica de uma empresa privada, mas não para o Brasil. O país ganharia mais se, em vez de apostar na diversificação geográfica, ele apostasse na diversificação de negócios”, diz.
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O físico Luiz Pinguelli Rosa, professor da Coordenação de Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe), da UFRJ, foi um crítico ferrenho da privatização da Vale. Hoje, mostra-se mais maleável. “O problema todo foi a maneira como foi feita a privatização. Houve muitas irregularidades. Os relatórios sobre as reservas de minerais, por exemplo, não batiam”, afirma. “Hoje, devo reconhecer, a Vale é uma empresa brasileira muito atuante. É claro que, como estatal, a tendência também era crescer, mas o fato é que hoje a Vale vai muito bem.”
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Por muito bem, entenda-se um crescimento assombroso. A Vale era uma das maiores empregadoras do país. Tinha 11 mil funcionários. Esse número mais que triplicou. Hoje, são 38 mil empregados. Só a controladora (sem contar as empresas compradas nos últimos nove anos) tem 24 mil funcionários. Seu valor de mercado foi multiplicado por cinco. O investimento anual, por dez. O lucro, por 14. Era de US$ 350 milhões e passou para US$ 4,8 bilhões (leia o quadro no fim da matéria).
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Como um país
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A operação da semana passada mostra que nos últimos anos a Vale do Rio Doce se transformou em uma potência econômica. Por seu tamanho, negocia com governos estrangeiros como se ela própria fosse um país. Tem mais crédito que muitos países, como se viu na transação com os canadenses. Para ficar com a Inco, a mineradora brasileira desbancou os americanos da Phelps Dodge e a Teck Cominco, do Canadá. Essas duas mineradoras chegaram na frente e tinham a preferência dos acionistas da Inco. Para virar o jogo, a Vale ofereceu pagamento em dinheiro, como se estivese fazendo compra no supermercado.
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Transações de compra de grandes empresas normalmente são feitas por meio de troca de ações. A oferta da Vale foi uma surpresa. O dinheiro, levantado junto a bancos internacionais, deu e sobrou. Ao todo, a Vale obteve US$ 30 bilhões. É uma dívida tão grande que no começo os analistas ficaram assustados, com medo de que a companhia tivesse dado um passo maior que a perna. A dívida da Vale saltou de US$ 5,8 bilhões para US$ 23 bilhões. Na entrevista para anunciar a compra, Agnelli afirmou que a Vale não reduzirá investimentos nem venderá ativos para quitar o débito. Pretende alongar o prazo de pagamento e liquidar o empréstimo em três anos. Os analistas aceitaram os argumentos e passaram a recomendar a compra de papéis da Vale como bom investimento.
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A compra da Inco tem duas etapas. Na primeira, fechada na semana passada, a Vale adquiriu 75% das ações da empresa e passou a controlá-la. Agora, a Vale vai atrás dos outros 25%. Ao todo, a mineradora canadense vai custar cerca de US$ 18 bilhões. A Vale já é a maior produtora de minério de ferro do mundo. Com a Inco, seu objetivo é liderar também a produção de níquel, minério usado principalmente na produção de aço inox. A nova empresa se chamará CVRD Inco e deverá produzir 400.000 toneladas de níquel por ano, de uma produção mundial estimada em 1,5 milhão de toneladas para 2011. O crescimento rápido do mercado chinês é o que dá segurança à mineradora para planos tão ousados.
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O mundo da mineração é dominado por poucas empresas, todas gigantescas e dispostas a tudo para manter posição. Embora se tratem com cortesia quando aparecem em público, a Vale e as mineradoras rivais – principalmente as australianas – ficam se espionando o tempo todo, uma tentando atrapalhar o caminho da outra. Para ganhar força e não virar presa de empresas maiores, a mineradora brasileira vem expandindo seus interesses no exterior. Antes de virar o jogo que parecia perdido na disputa pela Inco, a Vale já tinha sabotado outra rival – só que no Brasil.
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Foi em 2001, quando a BHP e a Vale competiam pela Caemi, outra grande mineradora brasileira de ferro. A Caemi era controlada pela família Frering, brasileira, e pelos japoneses da Mitsui. Os Frerings decidiram vender os 60% que tinham na Caemi e promoveram uma disputa de preços entre os interessados. A disputa acabou sendo vencida pela BHP, que ofereceu o maior preço. O negócio só não foi fechado com a BHP na mesma hora porque, conforme um acordo entre acionistas, antes de vender suas ações os Frerings precisavam oferecê-las à Mitsui. Se os japoneses pagassem o mesmo preço, teriam preferência.
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A Mitsui não estava interessada em adquirir a participação dos Frerings, mas foi convencida por Roger Agnelli. Ele insistiu para que os japoneses comprassem as ações dos Frerings. Em troca, prometeu à Mitsui uma sociedade num negócio maior, que incluiria a própria Caemi e outra mineradora, a Ferteco. Resultado: a Mitsui fez o que a Vale queria, as duas ficaram sócias e a BHP perdeu a parada. Fazia tempo que Agnelli cobiçava a Caemi, mas não foi apenas isso que o incentivou a correr atrás do negócio. O que ele não queria era ter a BHP no Brasil, com acesso a um s minério de ferro de qualidade mais alta que o da Austrália. “A situação hoje é boa para todo mundo, mas no futuro pode não ser”, afirmou ele, anos depois.
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O invasor simpático
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Além de muito dinheiro, o projeto de expansão da Vale do Rio Doce envolve um intenso trabalho de aproximação comercial. A direção da Vale já trouxe seus fregueses para conhecer o Carnaval carioca e de vez em quando leva aqueles que gostam de pescaria para passear no Pantanal. Para agradar aos clientes chineses, Roger Agnelli vai visitá-los de três a quatro vezes por ano e os recebe igual número de vezes no Brasil. Conhece ministros e figuras influentes do Partido Comunista, e ajuda as estatais chinesas a prospectar negócios no Brasil. Até no Canadá, onde ficou conhecido como o “invasor” que conquistou uma empresa tradicional do país, Agnelli é descrito como uma figura simpática. O jornal de Toronto The Globe and Mail referiu-se a ele como o “carismático presidente” da Vale e a “nova face do futuro da mineração no Canadá”.
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Uma das características mais marcantes de Agnelli é sua obsessão pelo trabalho. Chega à sede da Vale do Rio Doce, no centro do Rio de Janeiro, todo dia por volta das 8 horas da manhã. Fica até 23h30. Trabalha cerca de 16 horas por dia. Depois disso, no trajeto para casa, continua telefonando para pessoas que não conseguiu atender antes. Almoça na empresa, para não perder tempo no caminho para o restaurante. É um pouco da cultura de dedicação religiosa ao trabalho que aprendeu no Bradesco, por onde passou 20 anos.
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Agnelli chegou ao Bradesco em 1981, por meio de uma indicação. Vizinho de um parente de Amador Aguiar, fundador do Bradesco, Agnelli pediu emprego para ele e um irmão. O irmão saiu logo e foi cuidar da fazenda dos pais, no interior de São Paulo. Agnelli transformou-se num dos mais jovens talentos do banco. Por sua causa, as normas rígidas do Bradesco foram amenizadas pelo menos uma vez. O estatuto da instituição exigia 15 anos de casa para que um funcionário pudesse virar diretor. Já existia a idéia de reduzir esse prazo para dez anos, mas ela só foi colocada em prática para acomodar uma promoção de Agnelli. Ele chegou a diretor-executivo no Bradesco e, em seguida, foi promovido a presidente da Bradespar, a empresa que cuidava das participações do banco em outros negócios.
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Executivos que conhecem Agnelli dizem que ele possui um talento especial para farejar boas oportunidades de negócio. Ele levou a Vale para a China, quando ainda havia muita desconfiança em relação ao governo comunista de Pequim. Agora que está todo mundo encantado com o mercado chinês, ele apontou o nariz para a África e suas grandes reservas minerais. Na semana passada, depois de fechar negócio no Canadá, ele embarcou para a África do Sul, país que já lhe ofereceu vantagens para instalar uma usina de alumínio por lá.
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É o estilo de um executivo agitado, que gosta de calcular riscos e apostar em oportunidades. Tem a cultura de banqueiro, que foi sua formação. É uma cultura incompatível com o ritmo cauteloso e burocrático natural nas empresas estatais. E influenciou os caminhos que a Vale tomou nos últimos anos. Também por isso o sucesso da Vale privatizada dificilmente teria sido alcançado por uma empresa estatal. Mesmo sendo a melhor do país.
Revista Época