Discussão sobre Redd define futuro da floresta
25/08/09
Quem tem algum interesse no destino das florestas em tempos de mundo aquecido já decorou uma sigla: Redd. A quase 100 dias da conferência do clima de Copenhague, em dezembro, a efervescência do assunto tem a mesma temperatura que a polêmica que desperta. O problema é que o mecanismo de incentivo para a Redução de Emissão por Desmatamento e Degradação, Redd, um tema fundamental para o futuro da Amazônia, continua bastante aberto e provocando muita confusão.
Mas afinal, que bicho é esse que coloca do mesmo lado os governadores da Amazônia a despeito de partido e histórico de desmate, todos repentinamente atingidos pelo espírito da preservação? Redd é um camaleão do debate clima-floresta, dependendo de qual especialista se consulte. Para Virgílio Viana, diretor geral da Fundação Amazonas Sustentável, Redd é a possibilidade de as florestas do mundo inteiro receberem entre US$ 10 bilhões a US$ 20 bilhões ao ano, considerando-se só o possível fluxo de mercado dos Estados Unidos. Gilberto Camara, diretor geral do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE, tem interpretação oposta. “Dependendo de qual Redd estamos falando”, diz, “trata-se de uma falácia, uma ilusão”.
Tal espectro de visões e desejos em torno do tema se explica porque, a rigor, Redd ainda não existe. O conceito começou a circular há alguns anos no circuito da negociação internacional por um acordo climático e não há dúvida de que estará no que resultar de Copenhague. “Redd é a ação que reduz o desmatamento”, decifra Tasso Azevedo, consultor-sênior para assuntos de clima e floresta do Ministério do Meio Ambiente. “O Brasil apoia este mecanismo de incentivo para as florestas”, continua. “A questão é onde estará no tratado do clima, com qual formato e para que será utilizado.” Como este design ainda lembra o de um queijo-suíço, cada um interpreta o assunto como quer.
Redd, enquanto o acordo do clima não estiver definido, é nada e é mil coisas. É o projeto-piloto que o Banco Mundial toca em alguns países. Mas também poderia ser a compra de um equipamento para melhorar o monitoramento de florestas. O projeto da reserva do Juma, no estado do Amazonas, em que hóspedes da rede Marriott neutralizam emissões doando uma quantia que ajuda a preservar a mata nativa, é pioneiro. O Fundo Amazônia, que receberá US$ 1 bilhão da Noruega em sete anos como doação para projetos que preservem a Amazônia, é o maior fundo florestal do mundo e foi constituído por um Redd voluntário. A Índia quer Redd para as florestas que não desmatou, a China quer Redd para áreas que está reflorestando, o Brasil quer Redd para diminuir o desmatamento. Como se vê, cabe muita ideia neste balaio.
O grupo de 35 países com florestas no mundo é, evidentemente, o mais ativo no debate. “Mas não se salvará o clima do planeta só com florestas”, diz Thelma Krug, a representante do Brasil nas negociações internacionais sobre o assunto. Ela tem arrepios quando escuta que os governadores da Amazônia dizem que o Brasil perderá uns R$ 170 bilhões ao ano se não brigar pela remuneração dos serviços ambientais da Amazônia e não topar que países industrializados, que não conseguem cortar suas emissões em casa, compensem a lição mal-feita ajudando, por exemplo, a preservar a Amazônia. Soa como uma fórmula sedutora, mas muitos especialistas têm dúvida se o clima do planeta se beneficiaria desse regime de trocas. E quando se fala em exigir compensação surgem várias demandas no front internacional. O Equador, que tem florestas por cima de jazidas de petróleo, espera receber algo para não extrair. A Arábia Saudita, que não tem floresta nenhuma e um monte de petróleo, espera ser compensada pela perda de receita que vai sofrer. No meio desta bagunça, está a discussão de Redd.
“A floresta é grande parte do problema e grande vítima”, diz Marcelo Furtado, diretor executivo do Greenpeace. “Portanto, se quisermos resolver, temos que garantir a permanência da cobertura florestal do planeta – do um quinto que sobrou”. Deste um quinto, um terço é a Amazônia. “Se preservar as florestas é importantíssimo para enfrentar a mudança climática, a Amazônia é fundamental”.
Paulo Moutinho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o IPAM, explica porque Redd é vital para a floresta. “Se o mundo assumir que é fundamental estabelecer um teto para as concentrações de CO2 de modo que o aumento da temperatura se estabilize abaixo de 2ºC, é fundamental investir na redução do desmatamento tropical ou a conta não fecha”, diz. Para chegar a no máximo 2ºC, o IPCC, braço científico da ONU, diz que é preciso limitar a concentração de CO2 na atmosfera a 450 ppm (partes por milhão). Estima-se que já passamos de 400 ppm. Então, só com a redução do uso de combustíveis fósseis, mudança de matriz energética e do padrão de consumo dos países industrializados, não vai dar. É aí que as florestas entram no jogo.
Entre os países com floresta, o Brasil é de longe o mais habilitado em termos tecnológicos e de governança para levar adiante um programa de redução do desmatamento de longo prazo, diz Moutinho. “Pode ser uma grande oportunidade para que o país receba uma compensação pelos esforços que já fez e que poderá fazer ao reduzir as emissões pela queda no desmatamento”, entende. “Redd é um dos mecanismos que podem, em larga escala financeira, viabilizar a transição da lógica econômica em que se ganha derrubando para aquela em que se mantém a floresta em pé, com crescimento econômico”, continua.
Moutinho já faz relações entre as duas economias. “Para colocar um boi na Amazônia custa 150 toneladas de carbono por hectare”, cita. O IPAM é uma das ONGs mais ativas na defesa de mecanismos de Redd para preservar a floresta e remunerar quem a preserva. Segundo os cálculos do instituto há 47 bilhões de toneladas de carbono nas florestas remanescentes da Amazônia brasileira e 30% disso em terras indígenas. “É um patrimônio de valor inestimável”.
É vislumbrando este novo “ativo econômico” que há alguns meses os governadores da Amazônia fazem contas e contato com governadores dos Estados Unidos. “Para nós não é um ônus manter a floresta, é do interesse nacional”, diz Viana. “Vamos conservar as florestas por causa da chuva, da biodiversidade. Agora, isso tem um custo”, prossegue o coordenador da força-tarefa sobre Redd e mudanças climáticas criada há um mês para aproximar “a visão dos governos estaduais, a favor de Redd como mecanismo compensatório, com o governo federal, historicamente pouco favorável a isso.”
“Compensatório” é um dos pomos da discórdia de Redd. “Há grande preocupação que este instrumento seja utilizado para compensar a redução de emissões de países desenvolvidos nos territórios dos países em desenvolvimento”, diz Azevedo. Traduzindo: um país industrializado, com metas obrigatórias de redução determinadas pelo Protocolo de Kyoto, pode achar caro demais fazer os cortes trocando a frota de carros a gasolina por elétricos e decidir compensar isso dando dinheiro para preservar áreas de alguma floresta tropical. Parece bom para os povos da floresta que preservam sem ganhar nada, mas não parece bom se se pensar que o sistema pode tirar a responsabilidade de quem polui ou poluiu mais. “É uma discussão fundamental porque pode significar o fracasso de se atingir a meta de não superar os 2ºC”, diz Azevedo. “Temos que fazer uma soma de redução muito grande, todos os países juntos. Se não se somarem os esforços, e alguns cortes só substituírem outros, estaremos longe dos nossos objetivos.”
Viana discorda. “Ao introduzir o mecanismo compensatório, não necessariamente tiramos a responsabilidade dos países industrializados em fazer seus cortes”. Ele diz que o nó se resolveria com o estabelecimento de um limite. “Apenas 10% dos esforços dos industrializados seriam direcionados para Redd. Assim a maior parte de seus cortes seria interna”.
Há três fontes possíveis de financiamento para ações de Redd na mesa das negociações. Fontes governamentais, como o dinheiro da Noruega para o Fundo Amazônia, é a primeira. A segunda se refere a instrumentos do mercado de carbono, mas que não geram compensação. Nos países ricos e com obrigações de corte seria feito um leilão de licenças de emissão e parte desta verba financiaria ações de Redd. A terceira forma utilizaria recursos do mercado de carbono tradicional cruzados com o quanto determinada área de floresta preservada estocou e produziu de créditos. Aí está o modelo polêmico de compensação, o “offset”, e também a maior quantidade de recursos financeiros disponíveis.
Esse debate está mais aceso porque a legislação americana sobre clima, a lei Waxman-Markey, que tramita no Congresso, prevê os dois mecanismos de mercado, um com “offset” e outro sem. Para Viana, a lei americana cria a perspectiva de valorização do carbono da floresta. Os EUA teriam uma cota anual de 1 bilhão de toneladas de CO2 equivalente, o que daria os tais US$ 10 bilhões a US$ 20 bilhões para compensar nas florestas.
Este cenário seduz os governadores amazônicos. “O grande problema é que eles vão pleiteando e tem algumas coisas erradas”, diz Thelma Krug. “Partem do princípio que Redd simplesmente pagaria pela manutenção do estoque de carbono. Fazem uma conta assim: pegam o estoque inteiro de carbono da Amazônia, multiplicam pelo preço médio do mercado e acham que este dinheiro viria para o Brasil, mas não é assim”, situa. “Uma coisa é querer receber pelo serviço ambiental da floresta; outra, no contexto do clima, é entender que Redd pagaria para reduções efetivas que seriam feitas no desmatamento. É uma diferença bárbara o tamanho desta conta.”
Ela explica a confusão: “Uma coisa é dizer: quero que me paguem pelos 350 bilhões de hectares da floresta em pé que tenho, que é o tamanho da Amazônia. E outra é: quero que me paguem para que eu reduza a emissão de 1,1 milhão de hectares/ano, que é o que se desmata no Brasil”, continua. “”Redd serve para implementar ações para aliviar a pressão em cima da floresta em pé.”
Isto significa que Estados como Rondônia, Pará e Mato Grosso, se reduzirem suas emissões, poderão ganhar pelo esforço – o que parece justo de um lado, e estranho de outro. Deste jeito o sistema coloca no “pause” o preservado Estado do Amazonas. “Tem uma tendência na lógica do Redd para premiar o desmatador”, aponta Thomas Fatheuer, secretário executivo da Fundação Heinrich Boell, ligada ao movimento verde alemão. “Os recursos virão por redução de emissões, num primeiro momento, mas a negociação também debate a conservação da floresta”, diz Moutinho. “Está nas nossas mãos achar o mecanismo de distribuição mais justo possível, em que se remunere não só quem reduziu como quem sempre preservou”, continua. Ele propõe que o sistema internacional pague ao país que reduzir emissões e um sistema doméstico remunere quem conserva o estoque, como as populações tradicionais da Amazônia.
“O discurso da valorização da floresta em pé tem 20 anos e nada acontece. O carbono surge como a grande chance de colocar isto em prática, o que é legítimo”, pontua Fatheuer. “O problema é como.” Ele não vê problemas na conta nacional, onde um país como o Brasil reduz seu desmatamento, ganha por isso e cria políticas públicas que recompensam quem não desmata e quem diminuiu. “Mas nos mecanismos de mercado há o risco de se ficar ligado só a quem consegue vender”, continua. “E também não seria ético pagar pessoas para evitar um desmatamento que é ilegal”, prossegue. “O mundo está cheio de gente de boa intenção. Mas o que sairá depois que o mecanismo for aprovado irá refletir o posicionamento deles ou não?”. Outra dúvida é a coerência de Redd ao lado de políticas públicas que promovem o desmatamento. “Redd sozinho não vai dar conta de reduzir o desmate.”
Gilberto Camara, diretor do INPE, é também muito reticente em relação a mecanismos de mercado para financiar ações de Redd. Ele se opõe à ideia que um país ou Estado use o conceito do desmatamento evitado para receber créditos de carbono negociáveis no mercado. “Tem aí um problema moral”, diz. Ele lembra que as propostas de desmatamento evitado levam em conta uma linha de base que, no caso brasileiro, é a média dos últimos cinco anos. Abaixo disso, geram-se créditos e o país ganha. “Mas qual é este máximo aceitável?”
Pelos dados do INPE, a média do desmatamento de 2000 a 2005 foi 21.500 km2. A de 2005 a 2008, 14.300 km2. “Seriam 7000 km2 de créditos? Acho isso uma falácia porque admite que 21.500 km2 de desmatamento é aceitável”, indigna-se. “Não entendo como alguém que defende a floresta pode aceitar esse argumento. Acho uma hipocrisia. Esse conceito só se sustentará quando o desmatamento cair bastante”, prossegue. Camara levanta outro ponto. “90% do desmatamento é ilegal. Como podemos falar em desmatamento evitado que é ilegal? Combater a ilegalidade é obrigação de um governo democrático e republicano, não se pode vender a ilegalidade.”
Camara questiona ainda o dado que está sendo usado mundialmente sobre a contribuição das florestas na emissão global de gases-estufa. O último relatório do IPCC, de 2007, diz que o desmatamento nas florestas tropicais contribui entre 10% a 20% das emissões globais de CO2. “Esse dado, de 20%, é furado, mas se tornou padrão. O Príncipe Charles fala nele, o G8 fala nele, mas não é confiável”, rebate. Nesse sentido, acha Redd compensatório um risco. “Vamos nos enganar pensando que reduzimos as emissões globais e isso não aconteceu porque deixaremos de cortar onde elas efetivamente estão ocorrendo”, continua. Ele distingue três grupos de interessados em Redd de mercado: “Os países centrais que exageram o que é desmatamento para diminuir sua obrigação de reduzir, lideranças de países em desenvolvimento que sonham com o dinheiro e pessoas bem intencionadas na área ambiental que querem defender a floresta, mas com o dado errado.”
A proposta do Greenpeace, nesse debate quente, é híbrida. “Existem duas escolas radicais e um espectro intermediário”, diz Furtado. “Uma delas diz que não se deve comercializar florestas de maneira alguma e a outra aposta no contrário e acha que o mercado encontrará o balanço adequado para tanto”, continua. “Ambas não darão certo”, vaticina. “Uma porque não vai aparecer dinheiro algum e a outra porque é só olhar o que aconteceu no mundo em 2008 para ver o que é mercado sem regulação”, diz. O Greenpeace defende um sistema de Redd que contempla a existência de fundos nacionais além de um mecanismo de mercado com piso mínimo e teto máximo. O piso seria 1% do mercado de carbono para que os países com floresta possam desenvolver mecanismos de controle. E o teto evitaria a inundação de créditos florestais baratos.
O debate de Redd mobiliza todos os segmentos da sociedade preocupados com floresta dentro e fora do Brasil. É um dos temas principais das reuniões do Diálogo Internacional de Floresta e Clima, que reúne participantes tão diversos como povos indígenas, empresários, cientistas e ambientalistas e tem entre os principais promotores o Banco Mundial, o conselho empresarial WBCSD, os institutos de pesquisa WRI e IIED e a universidade de Yale. “Os beneficiários sociais e econômicos têm que ser claramente identificados e Redd não pode ser só a troca de dinheiro entre governos. Tem que envolver a sociedade e os povos indígenas” diz Roberto Smeraldi, diretor executivo da Amigos da Terra Amazônia Brasileira e um dos co-presidentes do Diálogo. “Redd é um instrumento positivo, mas tem que ser complementado. É um mecanismo de transição para outro mundo com a responsabilidade de ter mantido florestas em pé”.
Amanhã Redd será discutido entre empresários e o governo em seminário realizado pelo Valor e GloboNews, com apoio do Instituto Ethos, do Fórum Amazônia Sustentável e da Vale. Os empresários entregarão uma carta com sugestões ao governo sobre as posições brasileiras para a conferência do clima de Copenhague. Eles pedirão que o Brasil apoie a criação de um mecanismo de incentivo para Redd incluindo conservação e manejo. As fontes de financiamento deveriam contemplar, segundo eles, tanto sistemas voluntários como instrumentos de mercado.
Valor Econômico