Artigo | Paulo Honório – A irretroatividade do novo marco legal para o royalty mineral
04/12/18
1. Introdução
A Medida Provisória 789 foi publicada em 26 de julho de 2017, introduzindo alterações relevantes no royalty mineral brasileiro (CFEM). Algumas das novas regras entraram em vigor no mês de agosto daquele ano, vide a nova base de cálculo. Outras normas, relacionadas às alíquotas da exação, tornaram-se vigentes em novembro de 2017.
O Congresso Nacional alterou substancialmente o texto da medida provisória. A sanção do projeto elaborado pelas duas Casas Legislativas ocorreu em 18 de dezembro de 2017, com três vetos, sendo dois relacionados à destinação da CFEM a municípios socialmente afetados pela mineração e um veto quanto à alíquota fixada em 0,2% para diversas substâncias.
Por consequência, a Lei 13.540, resultado da conversão da MP 789, foi publicada em 19 de dezembro de 2017, consolidando um novo marco para a estrutura de incidência da CFEM.
A CFEM foi consideravelmente majorada para a maior parte de substâncias minerais, por aumento das alíquotas e da base de cálculo. Apenas a dedução de tributos que incidem sobre a venda é admitida, vedando-se o abatimento de despesas com frete e seguro. Ademais, todas as exportações devem ser testadas pelo Pecex, mesmo para partes não vinculadas e não localizadas em paraísos fiscais.
Contudo, a majoração apenas poderia ter sido imposta para títulos minerários novos, outorgados após a vigência da Lei 13.540/2017.
2. O núcleo essencial do Direito Minerário abarca a CFEM
O Consentimento para Lavra (representado pela Portaria de Lavra) é ato administrativo que inaugura uma relação jurídica de caráter permanente entre o minerador e o poder público.
Essa relação jurídica possui um núcleo essencial, composto das regras básicas do Direito Minerário brasileiro, as quais regulam o acesso e o aproveitamento econômico dos recursos minerais — ou seja, a aquisição, a conservação e a extinção do Título Minerário.
Consideramos que as regras pertinentes ao Direito Minerário podem ser classificadas em dois grupos: aquelas que dizem respeito ao núcleo essencial do Título Minerário e as que em nada repercutem nesse núcleo essencial.
A distinção é útil porque permite identificar as regras supervenientes à publicação da Concessão de Lavra que não podem retroagir para atingir as relações jurídicas consolidadas antes da sua vigência, que são justamente aquelas pertinentes ao núcleo essencial da concessão.
O núcleo essencial da concessão é o conjunto de regras relacionadas à (i) soberania da União sobre a atividade minerária, com a prevalência do interesse público; (ii) o regime de propriedade dos recursos minerais; (iii) a garantia ao concessionário da propriedade do produto da lavra, a quem incumbe o risco e investimento na atividade; (iv) o sistema de acesso e aproveitamento econômico dos recursos minerais, calcado no direito de prioridade e em um sistema de atos administrativos vinculados; (v) contraprestação devida à União — royalties; (vi) regras relativas à perda do Título Minerário; (vii) o equilíbrio econômico relativo ao regime das sanções minerais.
3. A CFEM integra o plano de aproveitamento econômico aprovado pela entidade reguladora do setor de mineração
A CFEM integra o núcleo essencial do Direito Minerário, por configurar a contrapartida paga pelo minerador pelo direito de aproveitar economicamente bem da União. Faz parte da essência da concessão outorgada ao particular que este, ao concretizar seu objeto — exploração mineral —, tenha o dever de pagar a contrapartida decorrente da atividade concedida, que é justamente a CFEM.
Nesse sentido, há expressa previsão normativa de que a CFEM integre o Plano de Aproveitamento Econômico (PAE) que deve ser apresentado pelo minerador à entidade reguladora do setor de mineração (ANM), como condição para a obtenção da Concessão de Lavra. É ver o artigo 1º, da Portaria do Diretor-Geral do DNPM 439/2003:
“Art. 1°. Quando dos requerimentos de concessão de lavra de que trata o art. 38 do Código de Mineração, na demonstração da economicidade do aproveitamento, deverá o interessado, obrigatoriamente, discriminar a previsão de recolhimento da CFEM resultante das operações de venda, consumo, utilização e transformação do produto mineral, bruto ou beneficiado, conforme o caso, obtida com base nas etapas de elaboração para obtenção do produto final e antes da incidência do IPI, levando em conta a escala de produção inicial e sua projeção, conforme art. 39, inciso II, alínea “a”, do mesmo Diploma Legal.
Parágrafo único. Esse procedimento também será obrigatório nos casos da proposição de alteração do Plano de Aproveitamento Econômico, de que trata o art. 51 do Código de Mineração” (grifamos).
O dispositivo em comento é esclarecedor, sob dois aspectos: (i) primeiro, ao deixar claro que a avaliação do impacto financeiro da CFEM sobre o empreendimento minerário é condição imprescindível para se avaliar sua economicidade; (ii) disso resulta que a CFEM, normativamente, pode ser causa da inviabilidade econômica do empreendimento, o que resultaria no indeferimento do pedido de Concessão de Lavra.
Ora, se a CFEM, tal qual apresentada à entidade reguladora do setor de mineração, é considerada para fins de avaliação da viabilidade econômica do empreendimento, pode-se afirmar que se trata de elemento que integra o núcleo essencial da Concessão de Lavra, a balizar prospectivamente a relação jurídica entre o minerador e o poder público.
Essa baliza, em termos quantitativos, é geradora de justa expectativa: (i) para o minerador, que planejará sua atividade econômica considerando a dimensão quantitativa da CFEM vigente à época em que aprovado o Plano de Aproveitamento Econômico; e (ii) para o poder público, que se planejará considerando a mesma dimensão quantitativa.
Isso significa, portanto, que o ato administrativo da entidade reguladora do setor de mineração, que aprova o Plano de
Aproveitamento Econômico, cria uma espécie de acordo de estabilidade fiscal no que tange à CFEM, fixando definitivamente a carga fiscal que pode ser exigida do minerador a título de royalty, até a exaustão da jazida.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXVI, dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Trata-se de uma regra que viabiliza a realização do sobreprincípio da segurança jurídica, mediante a estabilização das relações constituídas no passado, com a confiança quanto aos efeitos delas decorrentes.
O titular de Concessão de Lavra outorgada antes da vigência do novo marco regulatório possui direito consumado — ou, pode-se dizer, ato jurídico perfeito — às regras inerentes ao núcleo essencial do Título Minerário, vigentes à época do ato administrativo de outorga.
É que o ato de outorga da Portaria de Lavra estabelece a relação jurídica, de caráter permanente e com produção de efeitos para o futuro entre o minerador e o poder público. Não há outro ato posterior de aplicação das normas gerais e abstratas de Direito Minerário no que se refere estritamente ao seu núcleo essencial, apenas este, de outorga do Título Minerário, que se torna permanente e passa a reger, em definitivo, as relações jurídicas que emanam do título.
Por isso é que a presente questão é resolvida pelo princípio tempus regit actum, que significa que o ato é regido pelo direito vigente no tempo (ou momento) da sua ocorrência. O ato de outorga do Título Minerário faz com que o minerador possua direito consumado (ou ato jurídico perfeito) a que as relações jurídicas que emanam do núcleo essencial da concessão sejam regidas, no futuro, de acordo com os direitos e obrigações abstratamente previstos no momento da outorga.
Em decisão monocrática da lavra da ministra Cármen Lúcia, o Supremo Tribunal Federal analisou caso semelhante ao presente, sob a ótica do direito consumado ao regime jurídico relativo às concessões: trata-se da decisão acerca das alterações do regime de partilha dos royalties do petróleo, cobrados a partir da mesma regra constitucional da CFEM (artigo 20, parágrafo 1º).
O Congresso Nacional, superando o veto da então presidente Dilma Rousseff, modificou os percentuais de partilha dos royalties, atribuindo-lhes inclusive a estados não produtores. Dessa forma, o governador do Rio de Janeiro ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.917/DF, deduzindo pedido subsidiário de invalidade da aplicação das novas regras aos royalties derivados das concessões instituídas nos termos da legislação anterior.
A ministra Cármen Lúcia acolheu a fundamentação deduzida pelo então procurador do estado do Rio de Janeiro, atual ministro Luís Roberto Barroso, de que haveria “direito adquirido às participações atreladas às concessões já celebradas, constituído nos termos das regras vigentes ao tempo da celebração”.
No caso analisado pelo STF, a decisão foi no sentido de que a modificação no regime de partilha dos royalties do petróleo apenas poderia se aplicar para concessões outorgadas após a sua vigência. Já no caso da Lei 13.540/2017, parece claro que, pelas mesmas razões, a modificação no regime da mineração, quanto ao seu núcleo essencial, apenas poderá se aplicar para os atos de outorga produzidos após a sua vigência.
Isso significa que a Concessão de Lavra outorgada antes da vigência da MP 789, convertida na Lei 13.540/2017, representa direito consumado — ou ato jurídico perfeito — às regras inerentes ao núcleo essencial do Título Minerário, vigentes à época do ato administrativo de outorga, inclusive no que se refere à estabilidade da carga fiscal pertinente à CFEM.
4. Conclusão
Ante o exposto, os Direitos de Lavra em geral, vigentes à época da publicação da MP 789, não podem ser alcançados pelo novo marco legal do royalty mineral brasileiro, que apenas pode produzir efeitos válidos sobre títulos novos.
Veja abaixo a versão original (em inglês):
The non-retroactivity of the new legal framework for Brazilian mining royalties.
Article Summary
The present study investigates the collection of Brazilian Mining Royalty after Law no. 13,540 enacted on December 19, 2017, setting forth a new legal framework. If the CFEM, as presented to the regulator, is taken into consideration to determine the economic feasibility of the business, we can state that it is part of the core of the Exploitation Consent that governs the legal relationship between the mining company and the Government. This regulation, in quantitative terms, creates reasonable expectations: (i) to the mining company, which will plan its business based on the CFEM rate in effect at the time of the approval of the Plan for Economic Exploitation; (ii) to the Government, who will plan accordingly. Therefore, the administrative act of approving the Plan for Economic Exploitation by the regulating body of the mining sector creates a sort of tax stability agreement with respect to the CFEM, by defining the tax burden to be levied in the form of royalties until depletion of the mining deposit.
1. INTRODUCTION
Provisional Presidential Decree no. 789, published on July 26, 2017, introduced relevant changes to the Brazilian mining royalty (“CFEM”). Some of the new rules became effective in August of the same year, including the new tax base. Other regulations, concerning tax rates, became effective in November 2017.
The Brazilian Congress has significantly amended the text of the Provisional Presidential Decree. Both the Senate and the House of Representatives ratified the Bill on December 18, 2017, with three vetoes, two related to the application of CFEM to Municipalities socially affected by mining activities and one regarding the 0.2% tax rate to be levied on assorted substances.
Provisional Presidential Decree no. 789 was then converted into Law no. 13,540 and enacted on December 19, 2017, setting forth a new legal framework for the levy of CFEM.
In general, the CFEM rate was increased for most mineral substances and the calculation basis was also increased, since only deductions of the tax levied on sales are allowed. Deductions of freight- and insurance-related expenses are no longer permitted.
However, the increase should have applied to new Mining Titles only, granted after the enactment of Law no. 13,540 became effective.
2. THE CORE OF THE MINING LAW ENCOMPASSES CFEM
The Exploitation Consent (represented by the Exploitation Regulation) is the administrative act that creates a permanent legal relationship between the mining company and the Government.
The core of such legal relationship is comprised of the basic rules governing Brazilian Mining Law, which govern the access to and the economic use of mineral resources, that is, the acquisition, preservation and termination of the Mining Title.
We understand that the Mining Law rules may fall into two categories: the rules directly related to the core of the Mining Title, and those that are not.
This is a useful distinction because it helps identify the rules following official grant of an Exploitation Consent, which rules cannot relate back to legal relationships consolidated prior to their effective date, are precisely the ones that are relevant to the core of the concession.
Within the core of the concession is a set of rules related to the (i) sovereignty of the Federal Government over the mining activity, with public interest prevailing; (ii) mineral resources property regime; (iii) assurances to the titleholder, who bears the risks and the investments inherent to the mining business; (iv) system that allows access to and economic use of mineral resources grounded in the Pre-emption Right and in a system of related administrative acts; (v) compensation due to the owner of the mineral resources and to the Federal Government – royalties; (vi) rules regarding the loss of a Mining Title; (vii) economic balance related to the mining sanctions regime.
3. CFEM IS PART OF THE PLAN FOR ECONOMIC EXPLOITATION APPROVED BY THE MINING SECTOR REGULATOR
CFEM is part of the core of the Mining Title and is the compensation paid by the mining company for the right to exploit a Government-owned asset. To that effect, regulations require that CFEM be a part of the Plan for Economic Exploitation (PAE, as per original acronym), which must be submitted by the mining company to the regulator (ANM), as a condition to obtain the Exploitation Consent. According to article 1 of DNPM’s (National Department of Mineral Production) Regulation no. 439/2003:
Art. 1. Upon the application for the exploitation consent, pursuant to article 38 of the Mining Code, when proving the economic feasibility of the activity, the interested party shall inform the expected CFEM revenue arising from the sale, consumption, and transformation of the raw or processed mineral product, as the case may be, based on the phases for obtaining the final product but prior to the levy of IPI, considering the scale of initial production and projections, pursuant to article 39, item II, sub item “a” of the same Law.
Sole Paragraph. This procedure shall also be compulsory in the event of na alteration to a proposal for a Plan for Economic Exploitation, pursuant to article 51 of the Mining Code. (emphasis added).
The aforementioned provisions clarify two important aspects:
(i) the assessment of the financial impact caused by the CFEM to a mining company is an essential condition to determine its economic feasibility;
(ii) consequently, the CFEM may be the cause for the economic unviability of the activity, resulting in the denial of the application for Exploitation Consent.
If the CFEM, as presented to the regulator, is taken into consideration to determine the economic feasibility of the business, we can state that it is part of the core of the Exploitation Consent that governs the legal relationship between the mining company and the Government.
This regulation, in quantitative terms, creates reasonable expectations:
(i) to the mining company, which will plan its business based on the CFEM rate in effect at the time of the approval of the Plan for Economic Exploitation;
(ii) to the Government, who will plan accordingly.
Therefore, the administrative act of approving the Plan for Economic Exploitation by the regulating body of the mining sector creates a sort of tax stability agreement with respect to the CFEM, by defining the tax burden to be levied in the form of royalties until depletion of the mining deposit.
According to article 5, item XXXVI of the Brazilian Federal Constitution, “the law shall not impair a vested right, a perfect juridical act, or res judicata”. The provision ensures legal security, based on the stability of relations established in the past, adding trust to the effects arising from such relations.
The holder of an Exploitation Consent granted prior to the effective date of the new legal framework has vested rights with respect to the rules inherent to the core of the Mining Title in effect at the time the administrative act was granted.
An Exploitation Consent establishes a legal relationship that is perpetual and produces effects that will govern the future relationship between the mining company and the Government. There are no other subsequent acts applying the general and abstract regulations of the Mining Law with respect strictly to its core. This is the only one. The granted Mining Title is permanent and governs the legal relationship arising from the Title until depletion of the mining deposit.
This matter is settled under the tempus regit actum principle, which means that the act is governed by the laws in effect at the time of its occurrence. The Mineral Title grants vested rights to the mining company, whose core will govern future legal relations in accordance with the rights and obligations under it.
The Federal Supreme Court, by way of Justice Carmen Lucia, has reviewed a similar case under the scope of granted vested rights concerning decisions for altering the distribution regime of oil-derived royalties.
The Brazilian Congress overrode Dilma Rousseff’s presidential veto and changed royalty distribution rates even for non-producing states. Consequently, the Governor of the state of Rio de Janeiro filed the Direct Action of Unconstitutionality no. 4,917/DF, requesting the annulment of the application of the new royalty rules for exploitation consents granted under prior regulations.
The Federal Supreme Court decided that the distribution regime for oil-derived royalties Justice Carmen Lúcia could only apply to exploitation consents granted the claim led granted after their effective term. In terms of by the former Law no. 13,540/2017 with respect to its core, it is evident that, for the same reasons, altering the mining regime only applies to exploitation consents granted after their effective term.
4. CONCLUSION
In light of the aforementioned, we conclude that the holder of an Exploitation Consent granted prior to the effective date of Law no. 13,540/2017 has vested rights concerning the core of the Mining Law in effect at the time it was granted, including with respect to CFEM taxation burden stability.