O problema virou negócio
23/08/07
Por exigência da lei e pressão de grupos ecológicos, o mercado de estudo de impacto e gestão ambiental cresce como poucos no país Iniciadas durante o governo Ernesto Geisel, as obras da usina de Itaipu geraram uma onda de orgulho nacional e tímidos protestos ecológicos. Na época, o país dispunha de frágeis leis ambientais, e a ditadura privilegiava apenas o potencial econômico das obras. Para tornar-se a maior hidrelétrica do mundo — posto que só deve perder em 2009, quando o complexo de Três Gargantas, na China, estiver concluído –, Itaipu engoliu a cachoeira das Sete Quedas do Iguaçu e desalojou milhares de pessoas e animais silvestres. Se Itaipu ainda estivesse na prancheta, a história seria outra. No Brasil de 2007, como demonstra o licenciamento das usinas do rio Madeira, o bem-estar dos bagres e o risco de assoreamento nas bacias amazônicas podem atrasar projetos considerados vitais para pavimentar o crescimento do país. Desde 1997, a lei determina que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) licencie todos os projetos que incluam dois ou mais estados, estejam em terras ou rios federais ou em áreas de fronteira. Em obras menos complexas, a licença fica a cargo de órgãos estaduais ou municipais. Nos últimos anos, as exigências legais, a pressão dos grupos ecológicos e a retomada de grandes projetos de infra-estrutura criaram um novo mercado verde para as empresas que produzem os estudos de impacto exigidos pelo governo, os EIA-Rima (Estudo de Impacto Ambiental Relatório de Impacto Ambiental), e executam os projetos de gestão ambiental. Apesar de não existirem cifras consolidadas sobre o setor, trata-se de um mercado que cresce ano após ano. Estima-se que ao longo da última década tenham sido criadas milhares de empresas de consultoria ambiental, a maioria de microempresários, e que dezenas de milhares de profissionais — de engenheiros florestais a arqueólogos — estejam em atividade no país. No Ibama, há hoje 980 pedidos de licença em fase de avaliação, um recorde na história. Não se sabe ao certo quantos projetos estão sob avaliação nos estados e nos municípios, mas trata-se de um número também em alta — todos os postos de gasolina, por exemplo, precisam obter licenças ambientais estaduais. O crescimento do mercado verde não tem passado despercebido de empresas que lidam com construção pesada, como hidrelétricas. Grandes companhias têm criado departamentos exclusivamente para tratar de assuntos de licenciamentos. Em alguns casos, o que era um serviço interno virou um novo ramo de atuação. “Desde 2005, nosso faturamento triplicou e deve chegar a 22 milhões de reais neste ano”, diz o engenheiro José Ayres da Costa, diretor do CNEC, a divisão de engenharia consultiva e meio ambiente do grupo Camargo Corrêa. Criado por técnicos da Universidade de São Paulo, o CNEC foi incorporado pela Camargo em 1969 e é um caso raro de uma empreiteira brasileira que vende serviços ambientais. Seu portfólio inclui estudos para a Votorantim, como o projeto da usina de Tijuco Alto, entre São Paulo e Paraná, em fase final de licenciamento pelo Ibama. (Vale lembrar: Tijuco Alto aguarda licença há inacreditáveis 18 anos. E a Votorantim estima ter gasto num empreendimento que ainda não saiu do papel o equivalente a 20% do investimento total de 500 milhões de reais.) À medida que a escala das obras cresce, o preço dos EIA-Rima também sobe. A Odebrecht, que fez uma parceria com a estatal Furnas para o licenciamento das usinas do Madeira, afirma ter gasto entre 35 milhões e 40 milhões de reais com o estudo. “Os orçamentos ambientais aumentaram pelo menos 50% desde 2000”, diz Sérgio Leão, diretor de meio ambiente da Odebrecht. Os estudos de impacto são apenas uma das contas ambientais que recaem sobre as empresas. No longo prazo, os custos de gestão ambiental, que são implementados junto com o início das obras e visam reduzir seus efeitos negativos, tendem a sair bem mais altos do que os estudos de impacto. Nas hidrelétricas, os custos de gestão podem ultrapassar 10% do total do projeto — no caso do Madeira, isso pode significar uma despesa de até 2,8 bilhões de reais. “Muita gente acha que a licença resolve o problema, mas a conta da gestão ambiental é para sempre”, diz o geólogo Vitor Bellia, veterano no mercado, que há 23 anos fundou a Oikos, empresa líder do ramo que foi recentemente contratada pela Ferrovia NorteSul. Só a preservação de relíquias indígenas encontradas ao longo das obras da NorteSul já custou 8 milhões de reais. De acordo com Bellia, a falta de mão-de-obra é o maior desafio do mercado. “Está difícil achar engenheiros especialistas em recuperação de solos”, diz. Passaporte ambiental Como são os relatórios exigidos das empresas para a aprovação de projetos de hidrelétricas, estradas, fábricas e outros empreendimentos que afetam o meio ambiente O que é Os EIA-Rima, sigla para Estudo de Impacto Ambiental ? Relatório de Impacto Ambiental, são dois documentos que devem antecipar as conseqüências das obras sobre as condições geofísicas, os ecossistemas e a população da área afetada e indicar medidas mitigadoras dos impactos do empreendimento Quem faz Equipes técnicas multidisciplinares das próprias empresas que buscam o licenciamento ou de firmas de consultoria contratadas. Os times incluem engenheiros civis, hidráulicos e florestais, geólogos, biólogos, sociólogos, assistentes sociais, arqueólogos e antropólogos Quem aprova O relatório é submetido à aprovação de órgãos estaduais ou do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) Quanto tempo demora A lei federal exige que a aprovação leve no máximo um ano, desde que não haja nenhum pedido de estudo de complementação por parte do Ibama. Tal exigência, que ocorreu no caso da licença das hidrelétricas do rio Madeira, pode retardar o processo em vários meses ou anos Quanto custa Dependendo do porte da obra, os custos podem variar de 10 000 a 40 milhões de reais Fontes: Ibama, CNEC, Oikos e Odebrecht O INTERESSE DAS EMPRESAS em realizar bons projetos parece fazer sentido. Um EIA-Rima de qualidade pode ser um argumento a mais na hora de tentar convencer as autoridades — muitas delas avessas a qualquer interferência no meio ambiente, independentemente da importância da obra em questão — a liberar um novo empreendimento. “No passado, esses estudos costumavam ser muito ruins, mas hoje há um processo de aprendizado coletivo”, diz o economista José Eli da Veiga, coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental, da USP. “De um lado, as empresas têm de se convencer de que não dá para enganar o licenciador e que o melhor é fazer um trabalho tecnicamente qualificado. De outro, os órgãos do governo não podem propositadamente atrasar as licenças.” É fácil reconhecer um mau EIA-Rima. Geralmente ele é volumoso e reproduz dados de segunda mão. Estudos sérios costumam usar pesquisas exclusivas e os chamados modelos reduzidos, que simulam no computador e em maquetes os efeitos da obra no meio ambiente — por exemplo, o alagamento gerado pela criação de uma represa. Por mais técnico que seja esse trabalho, porém, nem sempre ele é suficiente para convencer as autoridades ambientais. Foi o que ocorreu no caso das usinas do Madeira. Segundo o estudo de Furnas e Odebrecht, depois de um ano da construção das barragens o assoreamento causado pela lama do rio chegaria a 14%, patamar que levou o Ibama a sustar a licença. A solução partiu do Ministério de Minas e Energia, que contratou um especialista indiano em sedimentos. Ele garantiu que a maioria das partículas passaria sem problemas pelas turbinas. O presidente do Ibama, Bazileu Margarido, nega que o órgão tenha atrasado a licença por motivação política. “Somos a favor do desenvolvimento sustentável e estamos desburocratizando as licenças”, diz. Para aprimorar o trabalho, o Ibama criou uma parceria com o Ministério de Minas e Energia a fim de fazer manuais de licitação que esclareçam critérios específicos para estudos de grandes projetos. Além disso, o Ibama acaba de ter sua divisão aprovada pelo Congresso e deve passar a se concentrar apenas nos licenciamentos — outras funções, como a proteção de áreas ambientais, deixam de ser atribuição do órgão. A idéia do governo é que isso possibilite um trâmite mais ágil na concessão de licenças. Da parte da iniciativa privada, a Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib) recomenda que os EIA-Rima sejam publicados na internet, para torná-los mais transparentes. “Isso evitaria uma série de conflitos”, diz Paulo Godoy, presidente da Abdib. “Geralmente cai tudo nas costas do Ibama, mas o problema pode ser de outro órgão.” Em termos de preservação, o Brasil está a meio caminho entre os Estados Unidos e a China. Com leis mais rígidas e grupos ecológicos mais ativos, os americanos mantêm um alto escrutínio sobre novos projetos. Apesar de apoiada pelo governo Bush, a perfuração de novos poços de petróleo numa área de preservação do Alasca foi barrada pelo Senado americano. Já na China, a construção de Três Gargantas desalojou quase 2 milhões de pessoas e alagou relíquias das dinastias Ming e Qing. “No Brasil, de agora em diante, o fator ambiental vai ditar o destino dos projetos”, diz Ayres da Costa. “Se não for sustentável, será um mau negócio e não irá adiante.”
Revista Exame