Por que não?
14/08/07
O Brasil colhe hoje as conseqüências do quarto de século em que consumiu a infra-estrutura de que dispunha e que lhe garantiu crescimento do PIB de 6,5% ao ano, de 1950 a 1985. Com a população aumentando 2,7% ao ano, a expansão do PIB produziu crescimento per capita que dobrava em menos de uma geração (25 anos). Certamente havia inúmeros problemas: a alta taxa de inflação, que se acelerou quando a mágica de correção monetária mostrou a verdadeira cara diante dos choques de oferta; o grave endividamento externo a partir do primeiro choque do petróleo, cuja produção interna não chegava a 20% do consumo e se arrastava há anos em 120 mil barris por dia; o aumento da “distância” entre os rendimentos das pessoas, apesar do robusto crescimento do emprego e do salário real; a ineficiência das políticas públicas capazes de reduzir desigualdades de oportunidades; a precariedade de atendimento das necessidades básicas dos mais carentes etc. É preciso registrar que a crise do início dos anos 80 não foi “made in Brazil”, como freqüentemente se afirma. Foi uma das mais graves crises em tempo de paz, como se vê no quadro abaixo: Em 1980/83, o Brasil fez um ajuste dramático e foi o primeiro país emergente a eliminar o seu déficit em conta corrente. Infelizmente foi, também, o último a fazer um acordo (em 1994) sobre o pagamento da dívida externa que se acumulara nas crises do petróleo, o que reduziu as possibilidades do seu crescimento. Talvez esse seja o momento para lamentar a terrível desinformação que infesta ainda alguns livros “didáticos” produzidos por medíocres historiadores, fracos em história, mas fortes em ideologia, que continuam a afirmar que “o desenvolvimento no período 1964-73 foi feito à custa de um insuportável endividamento externo”. A tolice se desfaz quando lembramos que em 1962 a relação dívida externa líquida/exportação era de 2,7 e em 1973 caíra para 1,4.
Um fato interessante refere-se ao comportamento da inflação no período. Entre 1976/78 (antes da primeira desvalorização cambial), ela foi de 42% ao ano; entre 1979/82, com a desvalorização e encurtamento da correção monetária dos salários, foi de 96%. Entre 1983-85, depois da segunda desvalorização cambial, se elevou (e se estabilizou) em torno de 220%, como se vê abaixo: Os números mostram: 1) que a desvalorização e o controle da demanda em 1983 atingiram o objetivo e eliminaram o déficit em conta corrente; 2) que a taxa de inflação, em parte devido à parafernália da correção monetária, dobrou com relação ao triênio anterior; 3) que voltamos a crescer robustamente sem déficit em conta corrente, o que sugere que a taxa de câmbio real estava em equilíbrio; e 4) que a pequena variação da taxa de inflação, em plena vigência da correção monetária dos salários, indica que havíamos atingido uma certa acomodação na distribuição de renda, condição preliminar para um programa de estabilização monetária bem-sucedido.
A partir de 1986, voltamos a repetir os erros que sempre levaram a economia brasileira ao impasse externo: controlar oportunisticamente a taxa de câmbio para reduzir a taxa de inflação. Durante 20 anos insistimos numa política cambial espasmódica, que aumentou dramaticamente os riscos do setor exportador e que só foi corrigida em 1999, o que nos levou a acumular quase US$ 190 bilhões de déficit em conta corrente entre 1995 e 2002. O Brasil “surfa” hoje na onda gigante da economia mundial, particularmente produzida pela China, Índia e Rússia, nossos cada vez mais distantes companheiros nos BRICs. Ela aumentou o volume do comércio internacional e, ainda mais, os preços de commodities. É ridículo imaginar que foram as virtudes de nossa política econômica que produziram o resultado que aliviou a nossa dependência externa. A tabela abaixo registra a participação das exportações brasileiras no total mundial e a precariedade dos nossos estímulos ao setor:
É melancólico. Enquanto acreditamos estar correndo, ficamos no mesmo lugar! A Coréia dobrou e a China sextuplicou suas participações no comércio mundial. Em 1983-85, exportávamos praticamente a mesma coisa: US$ 22 bilhões por ano. Em 2006, “batemos caixa” à vontade pela exportação de quase US$ 140 bilhões, mas a Coréia exportou US$ 326 bilhões, e a China, US$ 969 bilhões. Enquanto eles continuam a dar ênfase ao setor exportador industrial, comemoramos a construção de “eficiente” pauta de país “commodity”. Austrália, Nova Zelândia e Chile são nossos novos paradigmas. O pequeno problema é que, em 2015, seremos 210 milhões tentando cavar a vida na agricultura e mineração, enquanto os australianos serão 22 milhões (menos do que o interior de São Paulo), os felizes neozelandezes serão 4,5 milhões (menos dos que os favelados do Rio e São Paulo) e os chilenos, 18 milhões (menos do que a Grande São Paulo). E por que não? A volta ao campo e às minas é muito saudável, como ensinou o Grande Timoneiro antes de a China acordar… Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras Foto e gráficos: Valor Econômico
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